Cristalizar o efémero em cada imagem e devolver-lhe significado
The Macau newspaper Ponto Final, text by Silvia Gonçalves
7 de Fevereiro de 2017
Entre 23 de Fevereiro e 25 de Março, a Creative Macau acolhe a primeira exposição individual de fotografia de João Miguel Barros. “Entre o Olhar e a Alucinação” traduz, em 74 imagens, uma tentativa de apreensão da banalidade e efemeridade que fere o quotidiano. Fragmentos a preto e branco, que impõem a desaceleração e uma leitura íntima da realidade.
Sílvia Gonçalves
É quando o frenesim nocturno se apropria da cidade que o advogado sacode a aridez de códigos e compêndios e avança sobre as ruas. No outro lado do homem das leis reside a busca permanente da banalidade que pulsa no quotidiano. O objecto que se repete adquire sentido e significado no olhar que autonomiza uma imagem onde prevalece o preto e branco. O preto saturado, as formas desfocadas, o granulado que retira evidência à realidade capturada. João Miguel Barros entende o jogo cromático como distração, centra a imagem na indefinição que lhe confere o negrume, em corpos que são tantas vezes vultos que se esquivam na escuridão. “Entre o Olhar e a Alucinação” – a primeira exposição individual do autor – reúne 74 fotografias captadas ao longo dos anos, nos múltiplos lugares por onde passou. Chegado a Macau em 1987, diz já não encontrar mistério num território que permanece, ainda assim, como “uma página em aberto” para o olhar ávido do fotógrafo.
“Tentei ir buscar um bocadinho o registo do banal, porque as fotografias que estão nesta série de 74 imagens, e que vão ser, a quase totalidade delas, incluídas no livro [com o mesmo nome da exposição] que também vou lançar nessa altura, são fotografias que tentam mostrar uma certa banalidade do que nós temos à nossa frente. Mas que depois o nosso olhar pode ou não transformar em coisas que cada um considere especiais”, conta João Miguel Barros ao PONTO FINAL.
À primeira individual chamou “Entre o Olhar e a Alucinação”, um título que explica a partir das características técnicas de alguns dos trabalhos apresentados: “É porque eu incluí um conjunto de fotografias, nomeadamente algumas mais desfocadas, que fazem parte desse percurso em que nós olhamos e objectivamente vemos alguma coisa. E outras fotografias em que nós achamos que vemos alguma coisa mas fica sempre uma carga mais subjectiva e que tem um bocadinho a ver com as emoções de cada um”.
João Miguel Barros diz ter montado a exposição “com seis áreas diferenciadas”, sendo que em três delas, explica, é mais visível uma sequenciação, “essa ideia de história”. Integra nestas últimas as séries a que chamou “Night Visions I” e “Night Visions II”, “que são fotografias feitas à noite, em contextos de movimento, com situações que muitas vezes não ligam entre elas mas depois, no conjunto, elas podem considerar-se ligadas. A exposição em si tem pelo menos três painéis, esses dois e um que tem a ver com a capa, com dois cães, que é uma série de três”, revela.
Nas imagens que serão apresentadas na Creative Macau é rejeitado o recurso à cor, entendido pelo autor como distração: “Quando olhamos para alguma coisa que não seja a preto e branco, a primeira leitura sensorial que fazemos é o jogo cromático da imagem que temos à frente. Para mim é uma opção muito clara há muitos anos, a fotografia para mim é a preto e branco que é para poder valorizar o objecto retratado e não propriamente essa forma”.
Aos 59 anos, o advogado, com escritório em Portugal e Macau, integra no percurso jurídico e político as funções como chefe de gabinete dos antigos ministros da Justiça José Pedro Aguiar-Branco e Paula Teixeira da Cruz. Depois de retirado dos corredores da política, acompanha a actividade jurídica com a produção fotográfica, a que soma a curadoria, num retomar do vínculo à cultura que o acompanhou ao longo dos anos: “Eu tenho alguma relação com as questões culturais há muitos anos. E, no fundo, quando saí do Ministério da Justiça, em 2013, vi que era tempo de me começar a concentrar numa área cultural de que gostei sempre muito. Porque não é um problema de especialização, é um problema da gente ter tanta coisa ao nosso alcance que o que é verdadeiramente importante é ter uma área mais específica, mais limitada, que nos possa agarrar”, assume. A ligação à fotografia é retomada em definitivo: “Daí eu ter começado a tirar cá para fora as fotografias e começar também a fazer alguns projectos em termos de curadoria de fotografia de arte, como o que estou neste momento a preparar em Lisboa”, explica.
O projecto em preparação em Lisboa, de sua autoria, é um Ciclo de Exposições de Fotografia Contemporânea Chinesa, desenvolvido em parceria com a seguradora Fidelidade, em cuja galeria, no Chiado, serão apresentadas três mostras individuais, dos fotógrafos Lu Nan, RongRong e Yang Yankang, entre Julho de 2017 e Março de 2018: “Isto resulta muito da minha investigação sobre a fotografia nesta zona, e o facto de eu ter identificado um conjunto de fotógrafos na China que fazem fotografia absolutamente admirável”. O curador pretende trazer mais tarde o ciclo de exposições a Macau, estando em conversações com o Instituto Cultural.
Em Macau há três décadas – ainda que com uma ligação permanente a Portugal – o advogado, que agora afirma uma vertente autoral enquanto fotógrafo, assume que a relação visual com a cidade não encerra já qualquer mistério, mas as possibilidades não estão esgotadas: “Mistério, não. Mas oportunidades de fotografia, encerra seguramente. Eu diria que ainda é uma página em aberto”.